domingo, 19 de agosto de 2012

A Saga do Bicho


Um bicho que me latia
Me tateia
Me tatia
Me movia
Olhos de vermelho lacrimoso cheios de raiva
Cheios de uivo
Me absorvia
Uma pelagem morna de cor espessa
De fina pressa
Cheiro de ruivo
Sofreguidão
Escuridão
Sua alma era lama
Sua casca puro pó
Era só pó
Eu morria de dó
E me diziam que nunca se pode ter pena de ninguém
Mas aqui 
AQUILO
era  
                                       bicho


s           o         l             to.



Soltei.


Eu disse que larguei


E quando o via raiar

Num sussurro

Um urro de raiva
De perva vontade
Uma ânsia de verdade
Algo que me mastigava e fazia instigar
Algo que me incitava a querer me enamorar daquela raiva, de uma beleza amarga, de uma clareza cega.

Sua alma era de lama e sua índole era de quem clama por uma chama constante de pavio, qualquer coisa pequena que não chama atenção.
Sua lama era de uma calma escura de quem espera sem pressa pela presa que se afunda aos poucos num desespero vidrado e estático, numa espera calada e asmática.
Ele tinha cara de quem já vira muitas luas, tinha patas de quem vadia ruas.

Sua memória era andarilha
Qualquer coisa de rastro de bicho magro
Sonhava como a um passarinho que sonha em bater no vidro
E quebra o pescoço
De uma fragilidade patética nada lírica nem poética.

Sua vida medida em milhas
Milhas de viagens e histórias sem passado
Ele era quebrado
Antes dele eu nunca tinha conhecido alguém irreparável
Alguém que se quebrou em tantos pedaços que nem mil braços seriam capazes de abraçar.

Dias quentes, em que se parece fruta escorrendo fresca e apodrecendo ao sol
Aquele calor, aquele suor
Era como beber café amargo no deserto.

Um urro de raiva
Um murro que me caiba em cheio e me acerte no vazio para me machucar tanto, tanto quanto é possível sentir até não sentir mais
e dói porque acerta no meio do vazio e me mostra como ainda tenho incontáveis breus, incontáveis vãos
os meus vácuos inócuos, escuros e mouros.
tão incompletos e cheio de um nada que agora dói com sua pele fina cedendo tão fácil à lâmina macia, como céu gris em carne viva.
ele me olha com aquele olhar de bicho faminto, querendo comer minhas ânsias, minhas ancas, minhas inconstâncias, como se ele se sentisse feliz de acabar com a possibilidade que nunca existiu de eu ser completa, de eu mesma ser minha meta.

Sinto seus dentes afiados
Seu hálito de carniça
Sua vontade de morder minha prolixidade
Sua cobiça
Percebo que nunca serei saga
Sempre serei curta
Como lilás em pôr-do-sol.
Tão fugaz quanto gás.


Escrava e amante daqueles dentes finos
Dentes caninos
Brancos de marfim
Que me penetram a carne e sinto romper a pele -como o silêncio se rompe com o menor ruído e deixa de ser silêncio, e deixa de ser pele- com calmo deleite de quem gosta do que faz. Ele sente o sangue com doçura ser bombeado pra fora de mim, pra dentro da boca. Sinto seu hálito de carniça me entrar na pele.
Agora tenho pelos
Agora o bicho fera
Me faz ter pelos
Agora sou irreparável
Agora não sou domesticável
Antes dele nunca imaginei que eu poderia ser quebrada em tantos pedaços que nem mil braços seriam capazes de me abraçar.
Agora minha alma é lama.